domingo, 22 de janeiro de 2012

Teleanálise: "A polícia no Projac", por Malu Fontes

Nem bem estreou e o Big Brother Brasil 12 já chegou dizendo a que veio: convocou todo o país para falar de um suposto estupro na tal casa e todo mundo atendeu à convocação, a imprensa junto, é claro. Há uma semana que não se fala em outra coisa no País. Daniel estuprou ou não estuprou Monique? Pouco importa saber quem é um ou outro. Basta saber que são BBBs para que aquilo que um fez com o outro, ou contra o outro, passe a ter relevância nacional. Quiçá, internacional, visto que o formato BBB é globalizado, vale lembrar. Para se chegar a essa convocação  atendida majoritariamente por uma sociedade inteira, não se pode perder de vista, mais do que o assunto em si, a força desprogramada e incontrolável do fenômeno que já atende pelo nome de informação compulsória ou jornalismo compulsório. O fenômeno consiste no seguinte: mesmo que um determinado leitor não tenha absolutamente nenhum interesse num tipo específico de notícia, geralmente relacionada ao mundo das celebridades, ele saberá dessa notícia.   MORTO- Exemplos claros de notícias compulsórias: seja você quem for, se nas últimas semanas não tiver lido ou ouvido nada sobre o estupro do BBB, Luiza no Canadá e sobre Michel Teló, muito cuidado. Beslique-se, pois você deve estar morto. A consequência imediata da noticia compulsória é transformar o país num Fla-Flu, num Ba-Vi: uns são mortalmente contra o personagem objeto da notícia, outros doentiamente a favor e uma dúzia de silenciosos querem se mostrar intelectualmete superiores por se acreditarem fora do estádio apenas por ficarem rondando-o de soslaio na porta taxando os outros de imbecis. Se houve estupro ou não na casa do BBB, exibido pela Globo apenas para os telespectadores que têm TV por assinatura e compraram o Big Brother 12 pay per view, a emissora, a Polícia, a Justiça e os envolvidos que deem ao episódio o tratamento que a lei determina. Estupro é crime e até onde se sabe o Código Penal não é flexível para contextualizações como o fato de ambos estarem trêbados com a anuência e estímulo de uma atração televisiva e do ato ter acontecido diante de trocentas câmeras. Embora Boninho, o eterno diretor do programa tenha insinuado queixas à lei que enquadra o estupro, considerando-a como "muito ampla", o fato é que estupro é estupro e não há meio termo.   Para além do que quer que seja que tenha ocorrido nas barbas da Globo e de sua tipificação ou não como crime, impressionou a flora e a fauna que vieram a público 'enriquecer' o debate. De 'blogueiros progressistas' que aproveitaram o coito global para puxar o saco do patrão atual e lavar mágoas com os Marinho, pedindo que o Governo Dilma cassasse imediatamente a concessão da Rede Globo como emissora de TV até empresários e agentes dos dois personagens envolvidos trocando acusações moralistas, racistas e sexistas, nenhum nicho de protestantes deixou de dar seu depoimento nas redes sociais desde o imbróglio do edredon. POVO NEGRO - Sim, a repercussão se tornou maior que o fato e por mais que no dia do ocorrido Pedro Bial tenha resumido o que pode ter sido um crime sexual com um "o amor é lindo” e tenha explicado ao público a expulsão do acusado de estupro com um vago "comportamento inadequado", durma-se a Globo e os patrocinadores do BBB com um barulho desses feito pela fauna e flora na web. Quem quiser que acredite que os principais patrocinadores do programa fiquem extamente tranquilos com sua imagem junto ao público tendo investido mais de 100 milhões de reais e vendo suas marcas associadas a estupro. A emissora, por sua vez, teve um consolo e tanto. Se antes do 'estupro' a audiência do BBB 12 patinava na faixa dos 20 pontos, a pior de todas as edições, após o sexo supostamente não consentido o Ibope registrou um crescimento de 80% na audiência, que passou dos 36 pontos. Na fauna e flora já há o nicho que garante que o estupro foi forçado para inflar a audiência e que Daniel não passa de um vendido traidor do povo negro. E já convocando o diabo para refestelar-se nos detalhes, vale lembrar que, tendo sido estupro de vulnerável, abuso sexual ou relação sexual consentida, é fato que, dado o estado de perturbação alcoólica do casal, jamais cogitou-se convidar a camisinha para meter-se sob o fatídico edredon. Aliado a isso sabe-se que fazer sexo sem proteção com um parceiro que nunca se viu na vida e cuja responsabilidade com o par é zero, sempre pode acabar, no mínimo, em duas roubadas: na contaminação por uma DST (Doença Sexualmente Transmissível) dessas que se tem que carregar para sempre, Aids incluída, ou numa gravidez indesejada.   ABORTO - Como perguntar não ofende, vale uma interrogação:  se foi mesmo estupro e a moça tivesse ficado grávida, o público, em se tratando do BBB, seria convocado a participar da decisão a ser tomada sobre o destino do feto? Sim, pois em caso de estupro o direito de abortar é assegurado por lei no Brasil. E as igrejas, evangélicas e católicas, já que agora são todas amigas do tipo unha&cutícula com a Globo, iriam todas se manifestar contra a opção do aborto,  como fizeram durante a campanha eleitoral? Ou quem sabe Boninho, o eterno diretor do programa, poderia encampar o nascimento do rebento para, uma vez nascido, mantê-lo para sempre aprisionado na 'Casa' e inaugurar outro reality na linha Truman Show? Outra pergunta cabível em tempos de estupro transmitido ao vivo por pay per view: que tal nas próximas edições do BBB chamar o consultor e comentarista da Globo, Rodrigo Pimentel, para ensinar aos brothers e sisters como fazer para tomar todas e não correr o risco de estuprar nem ser estuprado na 'Casa' do Projac? Se ele vai até para a Rodoviária do Tietê no Natal ensinar aos nordestinos como não descuidarem-se das mochilas de costas para não atrair ladrão e às ruas para ensinar como as mulheres devem proteger a bolsa ao carregá-las... Convoca o Rodrigo Pimentel, Bial. Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 22 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Teleanálise: "Dispersa, cracolândia, que as eleições vêm aí", por Malu Fontes

Depois de cerca de duas décadas tolerando ou fingindo não ver a multiplicação de usuários de crack e de outras drogas em seu centro, a cidade de São Paulo resolveu enfrentar o exército de morimbundos da cracolândia de uma hora para a outra e de uma maneira pouco eficente. E pelo andar da carrugem e do tamanho do barulho que se viu nos telejornais nas últimas semanas sobre o assunto, o enfrentamento continua não dando muito certo. Ao invés de prender os traficantes que abastecem a região e de oferecer tratamento para os zumbis humanos que circulam por lá, o que se fez foi tão somente deflagrar uma operação de dispersão dos chapados.   Ninguém em sã consciência e sem hipocrisia pode discordar de que o Centro de São Paulo há muito tempo vem requerendo alguma ação política, sanitária, de segurança pública e preferencialmente várias ações dessa natureza coordenadas para impedir que um pedaço urbano do país continuasse a viver sob um sistema de exceção quanto ao tráfico e ao uso de drogas. Ou seja, embora o trafico de drogas seja crime e seja, inclusive, responsável por um percentual gigantesco da população carcerária brasileira, na Cracolândia o tráfico é, há anos, praticado 24 horas por dia, sob a vista omissa de todas as autoridades, de todas as esferas.   FESTA DO CACHIMBO – No entanto, um dado importante e que parece não caber na cobertura dos telejornais acerca da ação da polícia na Cracolândia é a grande coincidência que há entre o fato de se ter adotado agora a tal dispersão dos usuários de drogas do local e a proximidade das eleições. Sim, as eleições para prefeito se aproximam e três personagens protagonistas da sucessão paulistana dariam um rim para poderem anunciar primeiro para os eleitores algo do tipo: quem acabou com a festa do cachimbo fui eu. Para Geraldo Alckmin, o atual governador do Estado de S. Paulo, do PSDB e Gilberto Kassab, o atual prefeito da cidade, do PSD, chegar às vésperas das eleições sem uma solução, maquidada e superficial que seja, para a Cracolândia, equivale a colocar azeitona na candidatura de Fernado Haddad, a carta do PT, de Lula, Dilma e de quem mais reza pela cartilha do grupo para o cargo de prefeito de São Paulo.   Diante da iminência de que o Governo Federal planejava, através do Ministério da Saúde, uma ação para implantar na Cracolândia, com o objetivo de turbinar o nome de Haddad como candidato à Prefeitura, o governador e o prefeito atuais precisavam correr, não necessariamente juntos, já que têm interesses diferentes no processo eleitoral, para não correrem o risco de deixar no eleitorado a impressão de omissão, caso o ministro Alexandre Padilha anunciasse antes algum plano para os usuários.   A pressa de Alkmin e Kassab foi tanta que a coisa se transformou numa tradução do dito popular segundo o qual o apressado come cru. Movidos pela astúcia de sair na frente do Governo Federal, fosse como fosse, as autoridades paulistanas colocaram de uma maneira desordenada a polícia na rua, sem nenhuma estratégia sobre o que fazer com os dispersos no momento seguinte, já que não tinha para onde encaminhá-los nem como tratá-los, dado o volume do grupo e o nível de complexidade do vício em crack. Sequer esperaram a inauguração do abrigo que estava sendo preparado pela Prefeitura para acolher os usuários, oferecendo-lhes tratamento, assistência social, psicológica e psiquiátrica durante o processo de abstinência e de ressocialização. A previsão de inauguração era a primeira semana de fevereiro. Agora, o carro já foi para a frente dos bois.   FRACASSO - Embora a TV não consiga mostrar e contar ao telespectador todos os detalhes envolvendo a operação na Cracolândia, os jornais impressos vêm contando todos os dias detalhes do arco da velha sobre os bastidores da ação, o que explica o considerado fracasso da medida. A venda de drogas na região continua a ocorrer, quem quis se internar não achou vaga no serviço público e boa parte não deixou de consumir, traficar ou viver na rua. Simplesmente o contingente se dispersou pelos bairros da imediações, o que mais arranhou a imagem dos governantes junto à população. Uma solução mesmo que mediana para o problema continua longe. De concreta mesmo, uma evidência: a medida foi tomada agora e desse modo apenas por conta das eleições para a Prefeitura de São Paulo, porque três partidos estavam um com medo de o outro fazer algo antes para ficar bem na fita com o eleitorado.   Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 15 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Teleanálise: "Água mineral para maltês e lama para gente", por Malu Fontes

Quem tem muito dinheiro, obviamente pode gastá-lo como quiser e, claro, comportar-se como bem quiser e ninguém tem, em tese, nada a ver com isso. Entretanto, quando esse quem decide que vai fazer essas duas coisas em relação ao seu próprio e rico dinheiro em público, ou seja, gastá-lo e comportar-se perante um país inteiro, que potencialmente poderá espiar cenas explícitas de exibicionismo econômico e de consumismo, então não poderá reclamar dos julgamentos que certamente espocarão na mesma velocidade da iluminação dos tubos catódicos da TV.     E é esse tipo de julgamento que vem acontecendo na imprensa, nas páginas de comentários de blogs e sites e nas redes sociais desde a estreia, na semana passada, do reality show da Band, Mulheres Ricas. O programa entrou na ar na última segunda-feira  para ocupar o horário durante a temporada de férias do CQC. A atração reúne cinco mulheres milionárias, seja por herança de família, fruto de trabalho ou por cama, traduzida, neste caso, como casamento, claro. A socialite carioca ‘ai que loucura’ Narcisa Tamborindeguy, a ex-sem terra, capa de Playbloy e atual piloto de Fórmula Truck e rica Débora Rodrigues, a joalheira Lydia Sayeg, a arquiteta Brunete Fraccarolli e a empresária e apresentadora de TV Val Marchiori estão no ar para mostrar ao país como é viver sem limite no cartão de crédito.     TRAVESTI - De saída, se há algo obrigatório quando se vê, analisa ou critica qualquer programa de televisão é não perder a ideia de contexto e de conjunto do fluxo televisivo, do que é o veículo TV e do gênero com o qual determinada atração televisiva dialoga e que veio antes dela. Embora, no Brasil, o gênero reality tenha se consolidado com o Big Brother Brasil, da Globo, que esta semana estreia a sua 12ª edição, o SBT bem que tentou sair na frente com sua Casa dos Artistas. Num paralelo não só com o BBB, mas com a Casa dos Artistas, A Fazenda e coisas que tais, as moiçolas ricas da Band saíram perdendo de goleada na estreia.     Não se fala de audiência, claro, que ninguém de bom senso vai comparar a audiência e o faturamento turbinados de um BBB com os 4 pontos e alguma coisa marcados na estreia de Mulheres Ricas. Fala-se de justificativa para tamanha exposição para quem já tem tanto dinheiro, do potencial empatia com o público e do elemento mais delicado de todos na TV: espontaneidade ou, pelo menos, representação com naturalidade. Para quem achava o povo do BBB esquisito, artificial, que experimente 5 minutos diante do repertório de Val, Brunete e Lygia, diante das quais Narcisa e Debora parecem cool e os BBBs parecem atores capazes de interpretar Hamlet. Algumas das muheres ricas da Band são tão over e caricatas que parecem estar imitando um travesti sem talento num palco.     GUILHOTINA - Como não arregalar os olhos diante de uma uma velhota coberta de botox e surtada ao ponto de exigir ser fotografada para a capa de uma revista segurando uma Barbie, ambas vestidas e maquiadas à imagem e semelhança uma da outra? A tal, com sua autoridade de arquiteta, alfineta diante da casa de Debora Rodrigues, pintada de azul turquesa, que o único jeito para a casa melhorar de aspecto seria a demolição. Sim, mas o que diz seu próprio espelho de Dona Brunete, diante daquele rosto esculpido de silicone e botox e do seu cabelão de Barbie? Um espelho sensato sugeriria a ressurreição da guilhotina de Maria Antonieta para, quem sabe, com algum esforço, tentar aproveitar o que sobrasse ao sul do pescoço com um transplante de cara.     O povo que nunca gostou de livro mas tem uma atração fatal pela pretensão de parecer ilustrado poderá aproveitar mulheres ricas para fazer um curso intensivo de filosofia by Chanel. Sim, depois que a rasize abusou de mandar correntes por e-mail com textos que Pessoa, Veríssimo, Jabor e Borges nunca escreveram e depois que não-leitores de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu resolveram assassiná-los diariamente no Facebook e no Twitter, agora é a vez do povo da TV transformar Chanel em filósofa. Quer uma frase feita sobre elegância? Diga-se qualquer merda, coloque na boca de um personagem e diga que é de Chanel. Até Maria Adelaide Amaral foi longe para promover sua minissérie sobre Dercy Gonçalves. Para ela, Dercy e Chanel tinham a mesma classe, o mesmo brilho e a mesma filosofia de vida. Ah, tá. Val Marchiori and friends não abrem a boca sem citar uma máxima atribuída a Chanel.   PORNOGRAFIA – Entretanto, o melhor personagem da estreia de Mulheres Ricas não fazia parte do elenco. Era um coadjuvante: o jornalista e escritor Guilherme Fiuza, colunista da revista Época e autor de vários livros. Meio sizudo e sempre mal humorado em seus comentários sobre os mal feitos do governo, soa hilário ele achar tudo tao bem feito no comportamento da mulher, a rica e ‘rafinada’(sic) Narcisa. Sim, na estreia de Mulheres Ricas, o seríssimo Guilherme Fiuza lembrou ao país que, indepedentemente do dinheiro do ser amado, sim, o amor parece continuar muito cego.   Outra coisa que deu para aprender com o programa, usando a estratégia de ver TV no fluxo, ou seja, zapeando e confrontando cada cena, programa ou notícia com o contexto do país, foi a extensão do significado do termo pornografia social. Tem coisa mais pornográfica do que ver uma rica mostrando que sua cachorra maltês só toma água mineral, e em taça de cristal, enquanto, logo após, o telejornal da mesma emissora e todos os demais concorrentes mostram milhares de brasileiros desabrigados, afogados, sem socorro, gente literalmente atolada na lama, com casa e família juntas, em avalanches de enchentes diante das quais o país não investe um centavo em prevenção? Vá convencer uma criança pobre que não é melhor ser cachorro de madame... Ah, em tempo: no dia 10 estreia o primeiro reality da TV baiana. Oito pessoas confinadas dentro de um trio elétrio, o Trio Reality, na TV Aratu/SBT. Diz-se que o elenco será formado por semi-famosos que ficaram no meio caminho rumo ao estrelato da Axé Music. Oremos   Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 08 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Teleanálise: "Os estressados e as vítimas", por Malu Fontes

Pelos telejornais, chega todos os dias, para a maioria dos brasileiros, apenas um pequeno balanço dos desmandos que ocorrem nos bastidores do poder. Sabe-se que o que chega a se transformar em falas, imagens e documentação na televisão, e na imprensa de modo geral, é tão somente uma crosta superficial, fruto, quase sempre, da insatisfação de alguém envolvido em um esquema de desvio de recursos ou beneficiamento ilícito. Por alguma razão, um dos atores sociais do imbróglio sente-se prejudicado e resolve jogar no ventilador. Dificilmente há uma semana em que não seja veiculada nos telejornais uma denúncia de ‘mal feito’ envolvendo algum órgão público.   DESONESTO - Do mesmo modo, a cada ano sucedem-se na tela imagens apocalípticas de sucessivas tragédias brasileiras, todas elas, de algum modo, representando, sim, as consequências avessadas da corrupção, do desvio de dinheiro público, da omissão dos governantes. Se a TV noticia a cada final de ano ou em todos os pós-feriado uma montanha de corpos mortos e feridos no trânsito, se as retrospectivas noticiosas a cada ano dão conta de milhares de assassinatos, assaltos e latrocínios, se o número de crianças e jovens analfabetos é vergonhoso, o que está no fundo da explicação para isso tudo senão o fato de que, quem tem poder para começar a mudar as coisas, privilegiar a ascensão da vida financeira privada, sob os cofres públicos?   Entre as maiores tragédias vistas pelo Brasil em 2011, uma representou tudo o que poderia haver de pior, mais feio, mais trágico, desonesto e nojento na gestão pública dos problemas brasileiros: a tragédia causada pelas chuvas e suas consequências na região serrana do Rio de Janeiro, envolvendo sete municípios, entre eles os turísticos Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Foram mais de 900 mortos e 35 mil desabrigados. Há famílias que até hoje nunca encontraram os corpos de seus entes queridos.   Como sempre ocorre no Brasil, assim que o episódio trágico ocorreu, a cobertura foi plena, absoluta, geral e irrestrita. Transmitiam imagem até de dentro dos ouvidos das crianças resgatadas cobertas de lama. Manifestações de solidariedade de todo o país e até do mundo chegavam, eram bem vindas e emocionavam, comoviam e mobilizavam o país inteiro, diante da TV, como sempre. Um ano depois, no entanto, a tragédia parece apenas ter sido engessada, tornou-se seca como a lama quando a água evaporou, apenas por osmose, pelo efeito do tempo e da natureza. No entanto, dos milhões que foram destinados pelos órgãos públicos para remediar o impacto trágico na vida dos sobreviventes, pouco se sabe e, desse pouco, o que se sabe é muito ruim.   VIUVEZ - Um ano depois, milhares de desabrigados continuam com suas vidas praticamente em suspenso, no fio da navalha da inviabilidade cotidiana. Durante a semana, um desabrigado cuja mulher morreu, perdeu a casa inteira, com absolutamente tudo o que havia dentro e que até hoje lida com os traumas de um filho pequeno que foi arrastado por quatro quilômetros pela hecatombe de lama, água, correnteza, paus, pedras, restos de casa, corpos e animais, denunciava chorando a cegueira indefinível das autoridades burocráticas do município: para poder ser beneficiado com ajuda para a reconstrução da casa é preciso oficializar a viuvez. Para oficializar a viuvez, no entanto, é obrigatória a apresentação de todos os documentos do casamento, dos comprovantes da união e dos documentos pessoais da morta. Mas como, se tudo foi levado pela enxurrada? Há um ano ele trava esse diálogo de surdo com a burocracia imposta pelas autoridades que dizem que, sem isso, nada podem fazer para ajudá-lo nem aos seus filhos órfãos.   O que traduz, no entanto, a tragédia moral brasileira que norteia as relações do poder com a sociedade são as denúncias de desvio da quase totalidade dos recursos destinados pelos órgãos competentes para a reconstrução da cidade. Prefeitos, vereadores, secretários municiais, empresários da área de construção civil e que tais uniram-se em um complô não para devolver, o mais rápido possível, um pouco da dignidade perdida pelas pessoas que perderam suas famílias, seu trabalho, suas casas e seus objetos adquiridos ao longo de uma vida. Juntaram-se para desviar dinheiro. Prefeitos da região já foram cassados, uma CPI já foi criada na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro para investigar os culpados e o montante desviado.   BOLSOS - Na imprensa nacional, seja nos jornais ou na televisão, pouco se fala e mostra sobre o quão despedaçadas ainda estão as vidas dos sobreviventes, alguns vivendo até hoje como zumbis, duas ou três vezes vítimas. Primeiro, vítimas da falta de planejamento urbano de prefeituras populistas omissas que tudo permitem, até construir sobre cursos de rios e em cima de pedras. Depois, vítimas do imponderável que foi a precipitação pluviométrica recorde no período tão curto e numa região de solo tão específico. E, finalmente, o imperdoável do imperdoável: vítimas de gestores que desviam dinheiro público destinado para reconstruir as cidades e parte da vida das pessoas para cortar caminho rumo ao enriquecimento. Um dos prefeitos da região, meses após a tragédia, foi espairecer em Paris. Argumentou que estava estressado. A questão mais grave desse país é que as vítimas se estressam muito pouco. Já seus governantes, vivem fugindo para paraísos que o dinheiro alheio pode pagar para desestressar-se dessa prática tão cansativa que é pensar tanto em como encher mais rápido os próprios bolsos.   Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA

domingo, 25 de dezembro de 2011

Teleanálise: "Drama, mau gosto e ditadores", por Malu Fontes

Entre as imagens que marcaram a semana televisiva uma destacou-se: o espetáculo de histeria coletiva jamais visto nos telejornais. O público está acostumado a funerais de papas, ídolos da música, astros da história do cinema e de lideranças políticas de todos os matizes ideológicos. Mas quem já havia visto cenas de multidões histéricas nas ruas, sem precisar sequer estar no espaço físico do funeral, como se viu nas imagens que correram o mundo anunciando a morte do ditador norte-coreano Kim Jong II? Como todas as imagens foram distribuídas no mundo pelo governo coreano, uma das ditaduras mais fechadas do mundo, os telejornais questionam até que ponto a emoção do povo era legítima ou uma espécie de performance coletiva diante das câmeras por medo de represálias por parte dos sucessores do regime.   NU - Se em termos de imagens as caras, caretas, lágrimas e arremedos de catarse dos coreanos dominaram a seara televisiva, quando se trata de fatos, e também em escala internacional, não tem pra ninguém: o tema da vez é Cristina Kirchner, a espevitada presidente da Argentina, a viúva de Nestor, recém reeleita. Enquanto Cristina dava um pulinho no vizinho Uruguai, para participar de uma reunião do Mercosul, 50 militares da Gendarmeria, polícia especial que atua nas fronteiras do país, invadiam a sede da Cablevisión, uma emissora de TV a cabo do grupo Clarín, que faz oposição ao governo Kirchner.   O fato é que, mesmo que a presidente argentina jure sobre o túmulo do marido morto que nada tem a ver com a incursão fora de moda da Gendarmeria, quem há de acreditar que não há um dedinho do desejo da Casa Rosada na invasão? E como se fosse pouco, enquanto debatia pendengas econômicas com seus colegas do cone sul, Cristina teve de lidar com uma notícia trágica, essa tragicíssima, a ponto de, como num bom drama argentino, lhe fazer tombar semi-desmaiada: seu subsecretário de Comércio Exterior, Iván Heyn, 34 anos, unha e cutícula com seus filhos, foi encontrado enforcado no quarto do hotel onde estava hospedada a cúpula argentina. O Clarín noticiou que o corpo foi encontrado nu, pendurado em um cabide.   REFRESCO - Independentemente das razoabilidades e dos anacronismos que nortearam a invasão da emissora de TV por militares argentinos, a cena com as imagens na sede da Cablevisión foram do tipo de provocar enjoo em quem sabe o que a relação militares versus imprensa representa para a Argentina e para o mundo. Nas portas de 2012 e em um mundo onde até as empedernidas ditaduras árabes tiveram seus pés de ferro irreversivelmente avariados, ver a presidente argentina reivindicar para seu governo o monopólio de papel jornal como forma de trazer a imprensa que lhe faz oposição em rédea curta soa, no mínimo, como uma vilania política de muito mau gosto e sem lugar no tempo. Quem não vê nada demais nisso, que faça um exercício imaginário e pense em Dilma Roussef querendo fazer algo parecido com a mídia impressa brasileira ou em algum braço armado do estado brasileiro invadindo uma emissora de TV. Milico na redação dos outros não deve parecer refresco. E não é.      Embora os dois episódios, a histeria popular em imagens distribuída às emissoras de TV de todo o mundo pelo governo coreano, e a invasão da emissora de TV pelos militares argentinos, pareçam não guardar absolutamente nada em comum entre si, em ambos se vê a importância e a força da imagem, seja para ditaduras que se assumem como tal, seja para governos que se reivindicam democráticos e estão no poder pela legitimidade das urnas. Se, como desconfiam os telejornais do ocidente, a histeria dos coreanos é um produto do medo dos súditos de não parecem emocionados sempre que uma câmera de TV a serviço da ditadura é ligada, isso pode ser traduzido como o valor que a imagem tem, mesmo para as ditaduras mais radicais e fechadas do mundo.   OVO - Do mesmo modo, os modos de relacionamento que o governo argentino vem construindo com a imprensa que lhe faz oposição não querem dizer outra coisa senão revelar a vontade da democrata e republicana Senhora Kirchner de deter o maior controle possível sobre o que dizem e mostram dela os meios de comunicação. Se, na Coreia, o medo do ditador pode ter obrigado o povo a chorar de modo convulsivo, mesmo sem querer, na Argentina a presidente democraticamente eleita quer, do mesmo modo, impor o que o seu respectivo povo pode saber ou não a respeito de sua gestão. Nos dois casos, o ovo da serpente dos ditadores e seu poder controlador está sob as imagens e as notícias, mesmo se tratando de países, pessoas e eventos tão diferentes.        Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 25 de dezembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

domingo, 18 de dezembro de 2011

Teleanálise: "Senta lá, Negalora", por Malu Fontes

As repercussões rasas e descartáveis que sucederam alguns episódios midiáticos recentes ocorridos na Bahia, como o caso mulher ketchup, o projeto de lei que propõe impedir o governo baiano de contratar, com recursos públicos, bandas de pagode cujo repertório seja ofensivo às mulheres, a suposta relação entre os shows promovidos na praia por programas populares de TV e os arrastões realizados em locais próximos à festa e, mais recentemente, o bafafá em torno da estética e da nomenclatura Negalora, adotada por Cláudia Leitte, sob a chancela de Carlinhos Brown, não passam de mais do mesmo, de fumaça sem fogo. PIN UP - Cláudia Leitte em si já é um fenômeno midiático no mínimo difícil de ser enquadrado. É um produto do business fonográfico, construído passo a passo diante dos holofotes, desde os primeiros passos públicos, como a Lolita da banda Babado Novo. Uma década depois, muito investimento em marketing e um processo poderoso de agenciamento da aparência e da carreira a transformaram em um fenômeno polvo. Pouco se fala do seu talento musical. As informações que saltam aos olhos sobre seu estrelato centram-se nas referências celebratórias à sua beleza e ao seu vigor corporal de uma Barbie contorcionista de palco, à sua força atual de mascate publicitário que só anuncia menos coisas à venda que Ivete Sangalo, à sua imagem de pin up gostosa de calendário.   Ao mesmo tempo, a cada entrevista, ela própria ressalta com tintas fortes os valores tradicionais da maternidade, da família e da religião. Numa frase sim e na outra também cita a família, Deus, Jesus e a fé. Quando se trata de valores morais, chega a resvalar no conservadorismo, ou pelo menos assim é interpretada. Já chegou a ser execrada nas redes sociais por grupos gays, que a acusavam de homofobia por ter dito numa entrevista que preferia que seu filho fosse macho. Nos últimos dias, Cláudia Leitte voltou a ser alvo de uma saraivada de críticas por ter se transformado na personagem Negalora, batizada por Carlinhos Brown. NEGUINHA - Com outdoors espalhados por toda Salvador estampando fotos em que a cantora aparece mesclada, com um lado do rosto loiro e outro negro, batizando um show acústico e a gravação de um DVD batizados de Negalora, Cláudia Leitte meteu a imagem na cumbuca da reação irritada das diferentes tendências do movimento negro. Se os termômetros adotados para avaliar a reação da opinião pública forem as redes sociais, a ideia que se tem é a de que o neologismo tornado alcunha de Cláudia por Brown para o show foi usado como combustível para reacender a ira do movimento gay pelas declarações do passado, agora acrescidas de reações raivosas de quem acha um desrespeito à cultura e à música negra esse tipo de mimetização de cantoras brancas que adotam o mantra ‘eu sou neguinha’.   ARQUIBANCADA - Vale ressaltar, no entanto, que a reação contra Cláudia Leitte deve esconder mais restrições estéticas do que parece fazer crer a superfície das falas. Para bom entendedor, é claro que o barulho não se trata apenas de uma condenação ao fato de se tratar de uma branca invocando referências negras, e sim a um não reconhecimento, na performance da cantora, por boa parte do público que se afina à musicalidade afro, dessas referências reivindicadas pela Negalora. Se o nome do que cobram da moça é talento, que digam. No entanto, em tempos de politicamente correto, além de temer dar nome às coisas, soa muito mais ‘do bem’ aliar-se em defesa de causas políticas e sociais. Não demora e aparece um ação judicial mandando a moça limpar a maquiagem do lado negro da foto.    Não fosse isso, então, o que explica o fato de Daniela Mercury, e nem faz tanto tempo assim, ter se autodenominado como a neguinha mais branquinha da Bahia, na época em que O Canto da Cidade tornou-se praticamente o hino de Salvador? Se houve reação semelhante, onde está registrada a repercussão disso? O fato é que, sobretudo em Salvador, há diante de Ivete Sangalo, Cláudia Leitte e Daniela Mercury um público de súditos que se comporta como uma arquibancada do Ba-Vi. E nessa guerra de torcidas, Daniela Mercury é que fica melhor na fita quando se trata dos gays e dos defensores da preservação da cultura negra.   SENTA - Mas, independentemente das razões que legitimam a aceitação da neguinha de Daniela e a reação à Negalora de Cláudia Leitte, não deixa de ser irônica a ira do tipo purpurina de alguns diante de embates dessa natureza. Há falas na imprensa e sobretudo em artigos e pontos de vista em circulação nas redes sociais que, se lida desatentamente, fazem acreditar que há fronteiras culturais da boa e da má música, da legítima e da ilegítima e que devem ser respeitadas como sei, como se a geléia geral da indústria cultural e da cultura de massa há décadas já não tivesse passado um trator por cima de quaisquer filtros autorizadores quando a questão é dizer quem pode ou não pode cantar isso ou aquilo, assim e assado.   Onde está essa pureza cultural com fronteiras que não podem ser ultrapassadas sob o risco de o infrator ser acusado de compurscar e macular áreas intocáveis e sacralizadas dessa e daquela cultura? É tudo pastiche e assim será. No chão da arte, o restinho de sagrado que resta é o talento de poucos, coisa que importa cada vez a menos gente. Se há quem acredite numa ainda pureza cultural que autoriza uns e cospe em outros, Senta lá, Cláudia.   Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 18 de dezembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

sábado, 6 de agosto de 2011

Teleanálise: "Pode, Luiza?", por Malu Fontes

Em Salvador, o teminha midiático dos últimos dias tem sido a subida nas tamancas por parte das bandas de pagode e seus seguidores – e seguidoras - diante do projeto de lei da deputada estadual Luiza Maia (PT). A deputada apresentou à Assembléia Legislativa um projeto de lei propondo que bandas e grupos musicais, desses que brotam todos os dias fazendo o gênero novíssima poesia baiana e cujos versos mais líricos dizem que mulher é igual a lata, algo que o homem chuta e outro cata e incorporam coisas prosaicas como ralar a checa e chamam ‘mãinha’ para quebrar, fiquem impedidos de ser contratados pelo governo do Estado, ou seja, que não tenham cachês pagos com dinheiro público do Estado para repetir tais hinos celebratórios à mulher.



Aparentemente não seria preciso explicar que a deputada não quer proibir grupo de pagode nenhum de dizer coisa nenhuma. A proposta é outra, para quem lê o projeto. Ou seja, qualquer ídolo das meninas que quebram, ralam a checa, dançam na boca da garrafa, adoram ser chamadas de cachorrinhas e acham o máximo dar a patinha, pode cantar o que quiser e nem a deputada nem ninguém quer proibir nada. O que Luiza Maia defende é que o poder público, o Governo do Estado da Bahia, fique proibido de contratar artistas para gritar no palco versos misóginos, embora os meninos que a cantem provavelmente nunca tenham sabido ou nunca venham a saber que incorreram em misoginia.



PAULARIA - No entanto, a proposta que prevê que o Governo do Estado não possa remunerar para shows ou outras atividades grupos musicais cujas canções, em tese, denigram a imagem da mulher, foi transformada, em linguagem midiática popularesca em algo como ‘deputada quer proibir bandas de pagode de cantar músicas que ofendam as mulheres’ ou ‘deputada quer censurar bandas de pagode baianas’. E em seguida, veio a paularia na parlamentar, com a cantilena do senso comum de sempre: os deputados não têm o que fazer, a Bahia tem trocentas prioridades outras para merecer proibição e projetos de lei, por que a deputada não vai proibir o povo do funk, que é bem mais desrespeitoso com a mulher, por que ninguém nunca se preocupou com a misoginia que sempre esteve presente na MPB, na obra de Chico, Caetano e João das Couves e, a mais elementar de todas as teses: o pagode não ofende as mulheres. Ao contrário, ele as homenageia, as celebras, e elas adoram, pois todos os versos que falam da sensualidade (da mulher baiana, pois a baianidade adora esta expressão) são uma brincadeira saudável...



Bom, primeiro é bom que alguns críticos aprendam a mais elementar das lições politiquinhas quando forem contrapor um objeto de um projeto de lei a outro. A deputada Luiza Maia tem uma mandato conquistado para ser exercido na Assembléia Legislativa do Estado da Bahia e só pode, e se puder, se seus projetos forem aprovados, se meter com as causas e as coisas da Bahia. O funk do Rio, se é que alguém está incomodado com ele, não poderia ser objeto do mandato da deputada. Os deputados estaduais cariocas que vejam se Sérgio Cabral, além de voar de jatinho de empreiteiro, pode ou não pode remunerar o povo do funk para chamar as patricinhas do Leblon de cachorra, mesmo que essas não vejam nisso mal nenhum, como atesta em carne e fala Heloísa Faissol, a riquinha da zona sul que adora o epíteto de Galinha do Funk. Depois, independentemente do futuro do projeto da deputada entre os seus pares, que são quem, na verdade, vão decidir se ele vai ou não se tornar lei, a tese da brincadeira elogiosa e celebratória é para rir, não é não?



CANASTRONA - Na hora em que se trata da relativizar e aliviar o peso das ofensas midiáticas proferidas contra a mulher e sua sexualidade e corpo, é impressionante como as vítimas dos outros preconceitos se tornam tolerantes de carteirinha. Há, na história da MPB, letras de viés misógino e com ofensas contra as mulheres? E como! Mas o tempo não faz as coisas mudarem? A inquisição matava gente e hoje isso soa uma aberração. O cancioneiro popular, até bem pouco tempo, dizia o que queria sobre negros, mulatas e pobres. Mas hoje, faça-se uma música com uma ‘brincadeira’ bem humorada com um deles e veja como o mundindo civilizado reage. Então, por que, só com a mulher, a tese da brincadeira e da homenagem deve prevalecer?



Quer dizer que não se pode mais brincar com elementos da negritude, da homossexualidade, da pobreza, porque isso fere a dignidade da pessoa humana, mas com a mulher pode, Luiza? Infelizmente, o que norteia não apenas o projeto da deputada, mas sobretudo, as reações contra ele, é algo muito mais sólido e sério do que a forma canastrona como veículos de imprensa vêm fazendo enquetes com a pergunta mal formulada a leitores e telespectadores, associando o projeto a um ato de censura, inflando a polêmica rasa. A verdade dos fatos é só uma: cada povo tem o cancioneiro que merece. Muitas moiçolas adoram as brincadeiras do pagode e do funk. Por que? Ah, a resposta provavelmente seria enquadrada como atentado à dignidade feminina, ao passo que ser comparada a uma lata é só uma brincadeira ‘positiva’.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 07 de agosto de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA.