domingo, 25 de dezembro de 2011

Teleanálise: "Drama, mau gosto e ditadores", por Malu Fontes

Entre as imagens que marcaram a semana televisiva uma destacou-se: o espetáculo de histeria coletiva jamais visto nos telejornais. O público está acostumado a funerais de papas, ídolos da música, astros da história do cinema e de lideranças políticas de todos os matizes ideológicos. Mas quem já havia visto cenas de multidões histéricas nas ruas, sem precisar sequer estar no espaço físico do funeral, como se viu nas imagens que correram o mundo anunciando a morte do ditador norte-coreano Kim Jong II? Como todas as imagens foram distribuídas no mundo pelo governo coreano, uma das ditaduras mais fechadas do mundo, os telejornais questionam até que ponto a emoção do povo era legítima ou uma espécie de performance coletiva diante das câmeras por medo de represálias por parte dos sucessores do regime.   NU - Se em termos de imagens as caras, caretas, lágrimas e arremedos de catarse dos coreanos dominaram a seara televisiva, quando se trata de fatos, e também em escala internacional, não tem pra ninguém: o tema da vez é Cristina Kirchner, a espevitada presidente da Argentina, a viúva de Nestor, recém reeleita. Enquanto Cristina dava um pulinho no vizinho Uruguai, para participar de uma reunião do Mercosul, 50 militares da Gendarmeria, polícia especial que atua nas fronteiras do país, invadiam a sede da Cablevisión, uma emissora de TV a cabo do grupo Clarín, que faz oposição ao governo Kirchner.   O fato é que, mesmo que a presidente argentina jure sobre o túmulo do marido morto que nada tem a ver com a incursão fora de moda da Gendarmeria, quem há de acreditar que não há um dedinho do desejo da Casa Rosada na invasão? E como se fosse pouco, enquanto debatia pendengas econômicas com seus colegas do cone sul, Cristina teve de lidar com uma notícia trágica, essa tragicíssima, a ponto de, como num bom drama argentino, lhe fazer tombar semi-desmaiada: seu subsecretário de Comércio Exterior, Iván Heyn, 34 anos, unha e cutícula com seus filhos, foi encontrado enforcado no quarto do hotel onde estava hospedada a cúpula argentina. O Clarín noticiou que o corpo foi encontrado nu, pendurado em um cabide.   REFRESCO - Independentemente das razoabilidades e dos anacronismos que nortearam a invasão da emissora de TV por militares argentinos, a cena com as imagens na sede da Cablevisión foram do tipo de provocar enjoo em quem sabe o que a relação militares versus imprensa representa para a Argentina e para o mundo. Nas portas de 2012 e em um mundo onde até as empedernidas ditaduras árabes tiveram seus pés de ferro irreversivelmente avariados, ver a presidente argentina reivindicar para seu governo o monopólio de papel jornal como forma de trazer a imprensa que lhe faz oposição em rédea curta soa, no mínimo, como uma vilania política de muito mau gosto e sem lugar no tempo. Quem não vê nada demais nisso, que faça um exercício imaginário e pense em Dilma Roussef querendo fazer algo parecido com a mídia impressa brasileira ou em algum braço armado do estado brasileiro invadindo uma emissora de TV. Milico na redação dos outros não deve parecer refresco. E não é.      Embora os dois episódios, a histeria popular em imagens distribuída às emissoras de TV de todo o mundo pelo governo coreano, e a invasão da emissora de TV pelos militares argentinos, pareçam não guardar absolutamente nada em comum entre si, em ambos se vê a importância e a força da imagem, seja para ditaduras que se assumem como tal, seja para governos que se reivindicam democráticos e estão no poder pela legitimidade das urnas. Se, como desconfiam os telejornais do ocidente, a histeria dos coreanos é um produto do medo dos súditos de não parecem emocionados sempre que uma câmera de TV a serviço da ditadura é ligada, isso pode ser traduzido como o valor que a imagem tem, mesmo para as ditaduras mais radicais e fechadas do mundo.   OVO - Do mesmo modo, os modos de relacionamento que o governo argentino vem construindo com a imprensa que lhe faz oposição não querem dizer outra coisa senão revelar a vontade da democrata e republicana Senhora Kirchner de deter o maior controle possível sobre o que dizem e mostram dela os meios de comunicação. Se, na Coreia, o medo do ditador pode ter obrigado o povo a chorar de modo convulsivo, mesmo sem querer, na Argentina a presidente democraticamente eleita quer, do mesmo modo, impor o que o seu respectivo povo pode saber ou não a respeito de sua gestão. Nos dois casos, o ovo da serpente dos ditadores e seu poder controlador está sob as imagens e as notícias, mesmo se tratando de países, pessoas e eventos tão diferentes.        Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 25 de dezembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

domingo, 18 de dezembro de 2011

Teleanálise: "Senta lá, Negalora", por Malu Fontes

As repercussões rasas e descartáveis que sucederam alguns episódios midiáticos recentes ocorridos na Bahia, como o caso mulher ketchup, o projeto de lei que propõe impedir o governo baiano de contratar, com recursos públicos, bandas de pagode cujo repertório seja ofensivo às mulheres, a suposta relação entre os shows promovidos na praia por programas populares de TV e os arrastões realizados em locais próximos à festa e, mais recentemente, o bafafá em torno da estética e da nomenclatura Negalora, adotada por Cláudia Leitte, sob a chancela de Carlinhos Brown, não passam de mais do mesmo, de fumaça sem fogo. PIN UP - Cláudia Leitte em si já é um fenômeno midiático no mínimo difícil de ser enquadrado. É um produto do business fonográfico, construído passo a passo diante dos holofotes, desde os primeiros passos públicos, como a Lolita da banda Babado Novo. Uma década depois, muito investimento em marketing e um processo poderoso de agenciamento da aparência e da carreira a transformaram em um fenômeno polvo. Pouco se fala do seu talento musical. As informações que saltam aos olhos sobre seu estrelato centram-se nas referências celebratórias à sua beleza e ao seu vigor corporal de uma Barbie contorcionista de palco, à sua força atual de mascate publicitário que só anuncia menos coisas à venda que Ivete Sangalo, à sua imagem de pin up gostosa de calendário.   Ao mesmo tempo, a cada entrevista, ela própria ressalta com tintas fortes os valores tradicionais da maternidade, da família e da religião. Numa frase sim e na outra também cita a família, Deus, Jesus e a fé. Quando se trata de valores morais, chega a resvalar no conservadorismo, ou pelo menos assim é interpretada. Já chegou a ser execrada nas redes sociais por grupos gays, que a acusavam de homofobia por ter dito numa entrevista que preferia que seu filho fosse macho. Nos últimos dias, Cláudia Leitte voltou a ser alvo de uma saraivada de críticas por ter se transformado na personagem Negalora, batizada por Carlinhos Brown. NEGUINHA - Com outdoors espalhados por toda Salvador estampando fotos em que a cantora aparece mesclada, com um lado do rosto loiro e outro negro, batizando um show acústico e a gravação de um DVD batizados de Negalora, Cláudia Leitte meteu a imagem na cumbuca da reação irritada das diferentes tendências do movimento negro. Se os termômetros adotados para avaliar a reação da opinião pública forem as redes sociais, a ideia que se tem é a de que o neologismo tornado alcunha de Cláudia por Brown para o show foi usado como combustível para reacender a ira do movimento gay pelas declarações do passado, agora acrescidas de reações raivosas de quem acha um desrespeito à cultura e à música negra esse tipo de mimetização de cantoras brancas que adotam o mantra ‘eu sou neguinha’.   ARQUIBANCADA - Vale ressaltar, no entanto, que a reação contra Cláudia Leitte deve esconder mais restrições estéticas do que parece fazer crer a superfície das falas. Para bom entendedor, é claro que o barulho não se trata apenas de uma condenação ao fato de se tratar de uma branca invocando referências negras, e sim a um não reconhecimento, na performance da cantora, por boa parte do público que se afina à musicalidade afro, dessas referências reivindicadas pela Negalora. Se o nome do que cobram da moça é talento, que digam. No entanto, em tempos de politicamente correto, além de temer dar nome às coisas, soa muito mais ‘do bem’ aliar-se em defesa de causas políticas e sociais. Não demora e aparece um ação judicial mandando a moça limpar a maquiagem do lado negro da foto.    Não fosse isso, então, o que explica o fato de Daniela Mercury, e nem faz tanto tempo assim, ter se autodenominado como a neguinha mais branquinha da Bahia, na época em que O Canto da Cidade tornou-se praticamente o hino de Salvador? Se houve reação semelhante, onde está registrada a repercussão disso? O fato é que, sobretudo em Salvador, há diante de Ivete Sangalo, Cláudia Leitte e Daniela Mercury um público de súditos que se comporta como uma arquibancada do Ba-Vi. E nessa guerra de torcidas, Daniela Mercury é que fica melhor na fita quando se trata dos gays e dos defensores da preservação da cultura negra.   SENTA - Mas, independentemente das razões que legitimam a aceitação da neguinha de Daniela e a reação à Negalora de Cláudia Leitte, não deixa de ser irônica a ira do tipo purpurina de alguns diante de embates dessa natureza. Há falas na imprensa e sobretudo em artigos e pontos de vista em circulação nas redes sociais que, se lida desatentamente, fazem acreditar que há fronteiras culturais da boa e da má música, da legítima e da ilegítima e que devem ser respeitadas como sei, como se a geléia geral da indústria cultural e da cultura de massa há décadas já não tivesse passado um trator por cima de quaisquer filtros autorizadores quando a questão é dizer quem pode ou não pode cantar isso ou aquilo, assim e assado.   Onde está essa pureza cultural com fronteiras que não podem ser ultrapassadas sob o risco de o infrator ser acusado de compurscar e macular áreas intocáveis e sacralizadas dessa e daquela cultura? É tudo pastiche e assim será. No chão da arte, o restinho de sagrado que resta é o talento de poucos, coisa que importa cada vez a menos gente. Se há quem acredite numa ainda pureza cultural que autoriza uns e cospe em outros, Senta lá, Cláudia.   Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 18 de dezembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA